Wednesday, January 24, 2018

Palavras de Cotrim.

Aeroporto.



Tudo o que é sólido continua a dissolver-se, ora na mãos, ora no ar. Instituições, ideologias, valores. Laços, tradições, arrendamentos. Cerejas, famílias, vidas. O triunfo da matéria (do fluxo, do pragmatismo, da utilidade) sobre o espírito (o estado, a stasis, o sentido de mesmidade) prossegue, aprofundando-se os efeitos de um ideário, de uma ética que se revela particularmente transigente à possibilidade de criação de relações assentes em envolvimentos parentéticos, em comprometimentos parciais permeáveis ao efeito do cinismo, da egolatria, da desigualdade, do débito de reciprocidade.

Os aparatos de hoje confundem. Comportam um efeito anestésico, ao fomentarem a ilusão de que o mundo é mesmo assim, sempre foi assim, sempre houve este pladour, isto é, um sentido de realização urgente e inevitável, de relativismo e informalidade acrítica, um artifício de proximidade que tanto faz pela ratificação célere do que acontece.

Um aeroporto dá, hoje como ontem, lições de partir. Num aeroporto, o tempo adentra-se em caminhos de tempo incerto. Partir é hoje, de novo, uma razão de diferenças imprevistas,  de temporalidades insondáveis. Partir origina, uma maioria de vezes, um tanto mais um tanto menos do que aquilo que se antecipa. Partir comporta, para alguns, vantagens, mais-valias, uma condição de acesso a lugares de abundância; para outros, representa um custo, uma perda vivida como significativa, uma franquia, um lugar de recompensa tarifada, rangente. Para estes, partir tinge assíduo nas frontes um claro-escuro, um negro.

Num aeroporto, o sol erguido falha com frequência os dedos. Uma poética de browser revela-se com frequência insuficiente para dizer, para ir dizendo a inclinação dos ramos, a lassidão do laço, os caminhos ínvios de vidas severinas. Vidas: uma vida a desfolhar o malmequer, a praticar a saudade, o alívio ritrovil sublingual viandante.

Não obstante os efeitos, fala-se pouco disto nos corredores do utilitarismo, nas breaking news servidas de hora a hora, onde a pauta se excita apenas quando se discute o preço do quilo do bacalhau de asa branca.

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