Tuesday, May 16, 2017

Self-disclosure.

Um grande desígnio (XCIII).



(tenho confirmado em mim o jeito bruto do arado da memória: já não me lembro, com detalhe, dos teus primeiros dias, da tua primeira voz.
se perguntam como foi, como eras, invento o silêncio como motivo. já não me lembro. 

medes, por estes dias, noventa e um centímetros. calças o vinte e três. tens dois anos há dois dias. escolhes o que queres calçar, o que queres comer (arroz).

dizem que estás gorda, que estás alta, que és esperta, que és parecida com uma prima, com um primo, com uma avó, com a mãe, que já devias falar. invento também a este respeito, o silêncio como motivo. para mim, és parecida com um ovo que há nas nuvens. dizes muitas coisas que não vêm ainda nos prontuários: bô-ôbo-pau-pe-pis-cha-chi-pai-tata-chacha-ôuto. continuo a ir contigo à piscina, agora numa pista ao lado. já fazes as orelhas de coelho, o nariz de palhaço, o sapinho, a satinha, o avião.

é preciso saber aceitar o zero da régua, que nos diz de méritos rasos. um dia, por certo, não me ocorrerá o que já nos dizes por estes dias: outro, outra, já está, aqui, em pé, de pé, ao pé, no chão, mais.

gritas por mim, por estes dias, às seis da tarde, às onze da noite, às quatro da manhã, como se eu fosse para ti uma necessidade primordial: para ver melhor o roger, os balcões, os comboios, os cavalinhos, para passear o winnie the pooh, ouvir o salvador e aquele disco do aguinaldo ferreira, para dobrar o papel, cantar o ovo e o pinheirinho, para agachar e flectir o joelho, embalar e mudar a fralda ao bebé, para pedir o termómetro e os dedinhos de massa, para calçar os chinelos da mãe, cair da cama da cadeira da bicicleta, para assobiar e andar no carrinho do supermercado, para comer fiambre e do farelo das gatas.

és hoje, em mim, sem incêndio, um fundamento. saio à rua com a alegria acesa, crédulo, navegando a todo o pano o muro alto dos dias.

gostava muito de não a esquecer, a alegria).

No comments: