Monday, September 05, 2016

Self-disclosure.

Um grande desígnio (XLVI).



(é difícil, no presente, encontrar em portugal uma "casa" que nos seja própria, onde seja possível fazer habitar o sentido de futuro, incentivar o sonho, preservar a reciprocidade como norte ético de comportamento.

há, rangente, um embargo do futuro, da esperança, pequenas mortes silenciosas ruminando almoços em marmitas. uma torrente de idolatrias é proposto, no quotidiano, como fonte larga de consolo, afoitezas, novidades de alto género, indispensáveis. todas elas em tudo diferentes da esperança: o
futebol, o consumo, o prazer, o entretenimento, a juventude, o écran, o "défice", a "pensão vitalícia", a economia financeira, a técnica, o empreendedorismo vagamente aristocrático. Ao não conceberem alternativa, impõem-se como formas de coacção simbólica, de desertificação do imaginário, de vontades perenes de abraçar o hipotético, o minoritário.

adérito sedas nunes retratou o portugal contemporâneo como uma "sociedade dualista em evolução", marcado pela coexistência de atrasos e de progresso, de défices na repartição do rendimento disponível e dos elementos utilitários de civilização, e a persistência de estilos de vida "carecentes da capacidade de absorver e difundir eficazmente o progresso". trata-se de um retrato que data de mil novecentos e sessenta e quatro. ocorre propôr o dualismo e a reprodução social de desigualdades como verdadeira instituição e símbolo nacional ("portugal: país de salários baixos, de pensões vitalícias").

em agosto de dois mil e dezasseis, trezentas e trinta e duas "pensões vitalícias" foram pagas em portugal, por obediência a "critérios legais objectivos". há uma lista que espelha, com lacrimoso detalhe, os protagonistas de quarenta anos de democracia, os detentores do alguidar do garimpo.

a enésima nomeação de um qualquer mário-ruivo é noticiada com desenvoltura, não como uma escoriação, mas sim como acontecimento de relevo, fundamental. recordo, a este respeito, antónio aleixo*, como um teu bisavô um dia fez, num prolongado suspiro: o truque, o expediente, o comércio de favores, serão já, em português corrente, uma ciência.

a manutenção acrítica da mediocridade do "status quo" contribui para a estima dos poderes estabelecidos, a consolidação dos modos correntes de dominação,  que, paulatinamente, se cristalizam como um "novo normal", inescapável, uma inevitabilidade.

sinto-me por vezes diminuído, nos fundos da noite. nestes momentos, coloco o queixo no teu berço até ficar dormente, e vejo-te dormir.

o embargo do futuro e a correlativa desfuturização do presente constituem uma tragédia. o presente, formulado nestes termos, é figurado como eterno, lembrou orwell. quem controla o presente, controla o passado. quem controla o passado, controla o futuro, que é, no essencial, o presente.

há uma condescendência, um amor às pulsões de morte, uma reverência acrítica, secular, persistente, pela distância hierárquica (como sucede com a gravata, a distância hierárquica, em portugal, inspira um sentido de confiança, de presunção de competência, gera efeitos de tranquilização) e a assimetria das condições de origem. subsiste, no essencial, o medo nos desapossados, um medo de perder o que, ainda assim, se considera seu.

na dúvida em relação ao futuro, o constrangimento, o fatalismo, a nostalgia, o tributo ao passado, são um refúgio cognitivo, uma oportunidade de exílio temporário do pensamento. trata-se, porém, de espaços "negativos", que valorizam apenas condições de impossibilidade, e não ensejos íntimos de um "regresso a ítaca", de percorrer, como ulisses, o longo caminho em direcção a um sonho.

o futuro, dizem, é agora.
com o queixo dormente no teu berço, penso por momentos que gostava de saber fazer grandes balões com uma chiclete).




* "há tantos burros que mandam em homens de inteligência, que às vezes penso que a burrice é uma ciência". 

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