Tuesday, May 22, 2018

Self-disclosure.

AP 130.




À boca da manhã resta ainda no vagão um aroma mínimo aos ratings que alguém discutiu na véspera.

Alguns partem depois do amor, ainda de noite, depois de uma zanga breve desapontada. Lembram agora os matos por onde a canção lhes foge.

No vagão segue um recheio de gravatas, de rimel, de primeiras pessoas ditas no singular. Um ou outro agita as abas do nariz. Com os dedos sérios no côncavo da mão, vão falando como se fala, antes de se entrar em cena.

Suspiro, penso que estou triste. Levo as mãos aos bolsos, ajeito a dúvida na costura dos olhos.

No lugar da frente, segue uma senhora que marcou duas semanas de férias em outubro. 

Está a tentar marcar, entretanto, uma semana para o natal, uns dias pelos santos, e uma segunda-feira antes de um feriado municipal. 

Ao meu lado, uma senhora sublinha e-mails em voz alta, um senhor anota vozes de mando em escrituras. O nuno telefona entretanto à senhora. A senhora diz-lhe coisas de relevo para a sua felicidade. No vidro, a voz deles toma enfim a quietação própria de quem concorda. O senhor ao lado suspira, fala de musgo de pedras, faz contas de cabeça. Insiste particularmente em si mesmo.

No vagão, as senhoras vestem-se com redes, com rendas. Sobre a haste do pescoço, as bocas dos senhores são pequenos búzios de silêncio.

Desce um fio de sol na persiana. As pedras estão junto das bocas junto dos ouvidos, as mãos dormentes dividem o lugar da sombra. Alguns rostos afeitados descansam um pouco acima do chão. Nos dias moços, frequentaram (vê-se) a alegria. Há neles hoje um muro alto de idade e de ventos.

Ocorre-me que podia aproveitar a ocasião para praticar o gráfico de barras. Mas a senhora do lado entretanto fala. A senhora e o nuno, e a senhora, e a água a correr-lhe dos olhos depois de muito tempo.

Andar de comboio permite as rezas, uma certa inclinação da cabeça. Permite, ténue, um instante de exílio em que nos pensamos. Vê-se melhor os caminhos, os prodígios. O coração deixa de correr.


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