Wednesday, October 04, 2017

Palavras de Cotrim.

Agenesia.





Ontem fui ao dentista.

No dentista, disseram-me que padecia de agenesia.
Cumpri o papel que me estava reservado, naquela circunstância: disse que sim, que compreendia.

O valor social e simbólico, diferencial, das profissões, decorre em muito destas pequenas violências. O senhor doutor. A toga, a bata branca. O gabinete. O juiz que sentencia, sentado num plano elevado. A complacência. A reverência. O domínio de um regime de expressão particular. O uso de palavras que assinalam uma distância, a intenção de assinalar a existência de lugares diferenciados, a circunscrição de um campo.

Neste caso, a palavra tem um valor asséptico: refere um diagnóstico, uma prática de aparência e reverberação neutral (natural), objectiva, inquestionável. Aquele que assim (se) afirma, afirma um lugar de pertença, uma diferença. Uma diferença que tem um valor, que sublinha e reproduz um valor, uma ordem.

A diferença que assim se afirma, comporta, porém, um efeito dissuassor. Um efeito que pode ser ou não visado: a diferença que se afirma afecta o consentimento, isto é, a possibilidade de sentir em comum, estabelecendo uma barreira à possibilidade de diálogo, de compreensão.

Em contextos, como o português, onde a acção individual tende a valorizar, conservando, as posições, os papéis, as distâncias institucionais pré-existentes, a existência de barreiras, a diferença que se afirma, surge como natural, como expectável. Espera-se não se perceber por inteiro o que se ouve num consultório, num tribunal, numa assembleia, numa missa. É, em certa medida, tranquilizador.

Acontecer o que se espera valida o que se pensa: é um motivo relevante, em termos psicológicos. Contribui para a preservação de um sentido de integridade pessoal. Neste sentido, tranquiliza.

Se a prática ou o objecto considerado for outro, porém, poderão divergir os valores, a valoração, as consequências, o entendimento. Se um economista ou um historiador protagonizarem um diagnóstico, afirmando um contexto de greve como propenso à sedição, o diálogo poderá seguir ardente. Poderá ser sugerido que se trata de alguém que "tem a mania", que "gosta de complicar". O valor do diagnóstico é aqui questionável: surge comprometido pela existência de um julgamento pessoal, subjectivo, de um posicionamento inquinado por uma irritante superioridade moral.

Agenesia, portanto: há dentes que há, e que não existem na minha boca.

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