Monday, August 21, 2017

It`s an outlier!

Alçar a perna: Uma nota sobre a organização do capitalismo rentista.





Em tempos de capitalismo tardio, é possível enriquecer sentado.

Extrair riqueza a partir de riqueza já existente implica o domínio de saberes, de relações, de uma economia moral específica*. Saber, por exemplo, virar a página, tergiversar, assobiar, ao ouvir falar de assuntos difíceis. Saber como assegurar que o arrimo das práticas dominantes garante a preservação do que se encontra já instituído, da estrutura de acesso a privilégios já existente.

Aquele que procura a acumulação primitiva, a renda, a actividade extractiva, encontra-se, inaudível, um pouco por toda a parte. Na política, na cultura, no desporto, nas empresas, nas organizações, na academia. Dos recursos que detém, há um que importa destacar: o conhecimento. Hoje (como ontem), é importante conhecer coisas, pessoas. Partilhar lugares de classe, códigos de linguagem, números de telemóvel, mesas de restaurante, práticas, segredos.

Há um segredo específico que estes indivíduos partilham: os lugares onde é possível concretizar a actividade que constitui, em si, garantia de continuidade de acumulação salvífica. Esta actividade não foi ainda cabalmente escrutinada pela ciência. Tem já, porém, na ausência de outras possíveis, uma designação técnica: arrear o calhau no ar.

Trata-se de uma actividade de proveniência, protagonistas e conteúdo difuso. A sua génese, de localização imprecisa, a ausência de pé posto em terra firme, confere-lhe leveza, discrição, desprendimento. Trata-se, neste sentido, de uma actividade moderna. Contará com múltiplos intérpretes, cujos interesses se realizam longe, em lugares escolhidos, lugares próprios, assim ditos, para alçar-a-perna. Constitui uma prática imorredoura, comum em múltiplos domínios, que hoje (como ontem) proporciona a ventilação da organização capitalista: a escolha dos incluídos, a manutenção do status quo (a escolha de quem escolhe, de quem pode escolher).

O produto gerado por esta prática germinal, por vezes, assenta. E gera efeitos, consequências visíveis. A fabricação súbita de ídolos, de novas palavras-ídolo (e.g., "empreendedorismo"), de novos deuses, de notícias. A escolha de quem deve ser incluído na fotografia do regimento.

Um dia, alguém vê o produto gerado visível, um despojo aparentemente esquecido, e pergunta o que é aquilo. É um bocadinho de défice - ouve-se. Alguém escreve sobre aquilo. Alguém fala sobre aquilo. Alguém opina sobre aquilo.

Os indivíduos praticantes, incólumes, inaudíveis, assobiam ao longe, fazem um pouco de vento. Mandam fazer um pouco de vento. Ou seja, alçam de novo a perna, colocando de novo em prática o seu segredo, visando o mesmo efeito, as mesmas consequências.



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Boltanski, L., & Esquerre, A. (2017). Enrichissement: Une critique de la marchandise. Paris: Garimaud.


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