Monday, August 22, 2016

Self-disclosure.

Um grande desígnio (XLI).



(no outro dia, tive oportunidade de conhecer um cantor de nome david carreira.
por três euros, foi-me garantido que valia a pena. tratava-se de um artista.

arrisquei. tratou-se, de facto, de uma oportunidade. dando lume à dita, constatei em mim, no fundo, de novo, um desencontro, com o que é, por agora, tido por valoroso e desejável. 

como é sabido, em tempos de relativismo materialista e de culturas essencialmente visuais, a imagem suplanta a narrativa, e o que tem valor - no caso, artístico -, é o que vende, é o que se vê, e que assim se apresenta como desejável. e este artista era, aparentemente, desejado. era um artista valoroso, bom de se ver, como, três euros depois, me foi afiançado. o artista tinha pessoas à sua espera desde o meio-dia, mulheres que se passeavam próximas do dispositivo cénico onde o artista iria fazer o que os artistas fazem. os homens, resignados, comentavam entre si que tinham vindo passear as mulheres, para poderem ir descansados, no domingo, à caça.

o artista, a certo momento, surge em cena, e começa a fazer qualquer coisa com as pernas, com os braços, e depois, com o microfone.
alguma coisa devia estar, de facto, a acontecer. era assim, de facto. pelo que ouvi em redor, o espectáculo tinha começado.

o artista devia ser conhecido naquela localidade. apontava muito para as pessoas, e sempre que o fazia, surgia o êxtase, criando uma fugaz ilusão de intimidade. homens e mulheres gritavam o seu nome, e coisas que gostariam de lhe fazer se tivessem oportunidade.

na indumentária do artista, insinuavam-se alguns sinais visíveis de riqueza. alguns sinais, apenas, para que, em simultâneo, pudesse aferventar o desejo, e um sentido ténue de identificação e de proximidade. ouvi, penso, dois temas do artista, enaltecendo ambos, em inglês de balcão corrido, a importância vital de "sentir" - especialmente, pelo que me foi dado ver, com a região média das ancas.

alguma coisa estava, de facto, a acontecer. um dialecto genérico, mestiço, colagem-pastiche de refrões poupados em consoantes, prontos a viajar mundo naturalmente. dada a importância dada ao "sentir" e à sensação, e ao valor atribuído à performance das ancas do artista, não pareceu especialmente relevante, em termos gerais, se o artista-que-é-cantor canta de facto ou não.

ao sair, havia muitas jovens a falar de amor, em lágrimas. ocorreu-me, por momentos, o dito de felisdônio nas ruas de corumbá (assim descrito por manoel de barros: "as coisas que não existem são as mais bonitas"). pensei que também eu poderia ser bem sucedido neste plantio. já aponto há algum tempo, e tenho as vogais em dia, pelos refrões que invento, para não teres medo dos bróculos que, por vezes, acompanham o teu pratinho de massa).

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