Wednesday, October 15, 2014

Palavras de Cotrim

VIP.


No lugar oitenta e seis, a minha colega de viagem explorava com avidez a terceira sopa de letras. Tinha problemas com as consoantes, era uma mulher do campo, ainda boa de clavículas, dizia, mas não desistia de querer saber, queria ajudar a neta nos trabalhos de casa.


À sua frente, uma jovem, fértil em resoluções do corpo, retocava, inclemente, um gosto por espelhos, por lábios, camisolas estrangeiras, por ela própria.


A minha colega de viagem queixava-se amiúde - da vesícula, da juventude, da vista - tinha uma consulta já marcada para o natal. Dizia-se mal-dormida, ia às sementes, gostava muito de centros de mesa. Em santarém, abriu um tupperware, e levou à boca uma breve quadrícula de pão-de-ló, revelando especial gosto pelo açúcar que tinha posto em cima.


Ofereceu um pouco à jovem, que fazia entretanto amigos na internet.


A jovem disse que não podia - não tinha ainda a boca pronta.


Passados uns instantes, usou-a, ainda assim, para se justificar - falou do adiantado da hora, de caber em casacos de senhora, de uns tantos intentos cutâneos, não percebi ao certo, apenas me ocorria pensar nos romanos que, antigos, inventaram o cimento.


Chegados a vila franca, uma senhora recém-chegada indignou-se com o lugar oitenta e oito,
invocando papéis e direitos de lugar sentado.


A jovem, que se refazia ainda no seu espelho vip, estava no lugar errado, dizia a senhora,
escolhendo bem os adjectivos.

1 comment:

Unknown said...

Único, belissíma descrição como só tu farias. Adorei cada palavra, parecendo que viajava com elas...Obrigada.