Artwork: Âncora (Starjammers, 2014 - Série "Eu hei-de encontrar o real")
Uma árvore muito alta.
Havia uma árvore muito alta,
que era dita amiga de boa sombra
em canções e em segredos.
Havia quem dela guardasse memória,
quem dela não fizesse história,
quem para ela não olhasse duas vezes.
Um dia, veio um homem que aparou a relva e fez
aparecer um muro, uma placa que a dizia importante.
Houve, no dia seguinte, uma inauguração,
vieram senhores esguios, de óculos escuros,
que sorriram com propósito,
e comeram muitas saladas
num pires que lhes sobrava da mão.
Nos dias que se seguiram,
vieram amigos, novos, antigos,
apenas para ver a árvore muito alta,
ao longe agora,
pois havia entretanto o muro
que se dizia feito para a proteger.
Com o tempo, a árvore muito alta, protegida,
foi sendo progressivamente esquecida.
Nas suas alturas menos escondidas
foram aparecendo agrafos, placards de anúncios,
ervas daninhas, asperezas.
Uma vez, um dia, uma mulher foi ver a árvore,
e, lembrada talvez da infância,
saltou o muro e enfiou-se lá dentro.
Ouviu-se uma espécie de fala,
própria das árvores que ficam à espera,
muito altas, ansiando por amigos.
A partir desse dia, os amigos, de visita,
viram que a árvore protegida, muito alta,
foi ficando cada vez mais pequena.
Nas traseiras da casa da mulher cresceu,
pouco tempo depois,
uma árvore muito alta,
onde a mulher anda de baloiço,
depois de fazer arroz doce
e guardar duas notas de cinco para dar aos netos.
(para a minha mãe)
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