Monday, August 25, 2014

Self-disclosure



 Artwork: Âncora (Starjammers, 2014 - Série "Eu hei-de encontrar o real")




Uma árvore muito alta.


Havia uma árvore muito alta,
que era dita amiga de boa sombra
em canções e em segredos.

Havia quem dela guardasse memória,

quem dela não fizesse história,
quem para ela não olhasse duas vezes.

Um dia, veio um homem que aparou a relva e fez
aparecer um muro, uma placa que a dizia importante.

Houve, no dia seguinte, uma inauguração,
vieram senhores esguios, de óculos escuros,

que sorriram com propósito,
e comeram muitas saladas

num pires que lhes sobrava da mão.

Nos dias que se seguiram,

vieram amigos, novos, antigos,
apenas para ver a árvore muito alta,

ao longe agora,
pois havia entretanto o muro

que se dizia feito para a proteger.

Com o tempo, a árvore muito alta, protegida,
foi sendo progressivamente esquecida.

Nas suas alturas menos escondidas
foram aparecendo agrafos, placards de anúncios,

ervas daninhas, asperezas.

Uma vez, um dia, uma mulher foi ver a árvore,

e, lembrada talvez da infância,
saltou o muro e enfiou-se lá dentro.

Ouviu-se uma espécie de fala,

própria das árvores que ficam à espera,
muito altas, ansiando por amigos.

A partir desse dia, os amigos, de visita,

viram que a árvore protegida, muito alta,
foi ficando cada vez mais pequena.

Nas traseiras da casa da mulher cresceu,

pouco tempo depois,
uma árvore muito alta,

onde a mulher anda de baloiço,
depois de fazer arroz doce
e guardar duas notas de cinco para dar aos netos.



                                                                                                          (para a minha mãe)

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