Thursday, January 19, 2012

Palavras de Cotrim


Artwork: Uma alegria (Starjammers, 2012).





Kaos
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No início dos idos de noventa, lembro-me de um dia em que me apercebi, talvez pela primeira vez, por certo numa primeira e ínfima parte, de que massa íntima seria feito.

Tinha doze anos, um metro e cinquenta em estado emílio, como em rousseau: aproveitei um último benefício concedido pelo empregador do meu pai à sua descendência, e empenhei dois mil e quinhentos escudos numa Valentim de Carvalho, num cd, dos primeiros os mais sinceros, de um selo certeiro pioneiro: a Kaos Records.

Muito disto soará a anacronismo, a bafio excelso: foi este particular, contudo, que também me fez, e ainda hoje me ocorre o sobressalto em forma de ovo. Aquilo que era pouco, tão pouco, eu era aquilo, eu afinal era aquilo. O que aí ouvi serviu de amparo fértil para o resto todo dançante que se seguiu, e muito foi o que se seguiu que me serviu como segunda pele feita à medida.

Dancei o António Pereira, USL (Dance with me, dance with me, dance with me), Urban Dreams, The Ozone, um certo outro ainda por certo terreno, no verão de noventa e quatro, no escuro brilhante mais recôndido. Disseram (ouviu-se), depois, que a dança (isto é, o encontro, a alegria de uma descoberta) talvez fosse epilepsia.

O António Cunha da Kaos morreu. Não o conhecia, nem chegou a ser notícia.

Muitos tomam como preferência praticar o que o outros praticam, gostar do gosto que domina, ouvir variações do mesmo - ouvir o que se ouve na velocidade do tapete, para, de pronto, tomá-lo por conhecido, acessível, reconhecível, nesse mesmo momento.

O advento digital feito de hipertrofia de estímulos e consumos céleres sublinha a ideia de que o que se ouve, como o que se vê, sente ou lê, não servirá para partilhar como uma surpresa, a surpresa de quem encontra um código imprevisto, que não se encontra em voga - bombazine em tempo de seda, esquecidos, por um momento, os fulgores efémeros dos heroissempelo.

Falo de uma devoção (uma alegria), de um amor miúdo, manifesto além do tempo, livre de derrama e pullovers assim em forma de bico, satisfazendo, outrossim, uma necessidade de pertença, um sentido de coincidência com que o mundo comum não me diz.


Obrigado, António Cunha.

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