Wednesday, October 12, 2016

Palavras de Cotrim.

Família(s).




A divisão acentuada, rígida, de papéis nas famílias está especialmente presente em contextos que se caracterizam pela prevalência de invariantes comunitárias (Dubar, 2006), contextos onde a imposição de ordens simbólicas fundadas no respeito pela tradição, influenciam o modo como são cristalizadas distâncias, diferenças, nos papéis socialmente atribuídos, na hierarquização de posições, dominantes e dominadas. 

Neste ordenamento simbólico, uma das invariantes que se registam, no plano histórico, é dada pelo acantonamento das mulheres na esfera doméstica, a atribuição correlativa de posições de subordinação, e a existência de "identidades negativas" nas estruturas de parentesco (Singly, 2007).

A família, as relações familiares e de parentesco, definem, num quadro de filiações do tipo comunitário (Weber*, 1971), a primeira instituição de integração social, correspondendo ao lugar da mais rigorosa desigualdade. As mulheres são confinadas ao recato da habitação, ao reduto do trabalho doméstico, enquanto aos homens é confiada a liberdade de dedicação às actividades consideradas nobres, referentes à política, ao tratamento da coisa pública, no espaço público, na cidade.

A especialização funcional é, deste modo, acentuada. A produção é um assunto masculino: os homens devem cumprir papéis instrumentais, económicos, provedores (os “male bread winners”). A reprodução é, naturalmente, nesta asserção familialista (Lenoir*, 2003), uma condição feminina, estando reservado às mulheres os papéis expressivos, afectivos, cuidadoras primeiras no seio de "famílias-bastião". O trabalho, e, em particular, o trabalho doméstico, contribui, deste modo, para a definição das existências públicas e os campos de invisibilidade privada.

A segregação estrita, espacial e temporal, do universo do trabalho e do universo familiar introduz filiações específicas, sendo as mulheres colocadas numa circunstância de dupla dependência, no plano económico e identitário, acedendo apenas a formas privadas de pertença e de reconhecimento, identidades que se estabelecem em regime de procuração (e.g., “filha de...”; “mulher de...”; “mãe de...”).

Inscrito ainda num quadro de integração de tipo comunitário, o acesso das mulheres a actividades assalariadas teve lugar a partir do século XIX, numa relação de continuidade com o desempenho de tarefas domésticas, educativas ou curativas especificamente femininas, ou seja, tarefas que relevavam do exercício de papéis domésticos.

A partir da década de 1960, assistiu-se a uma mudança sócio-cultural e institucional profunda, progressiva, nos modos de articulação dos universos familiar e de trabalho, que passa a poder ter lugar não apenas à luz de lógicas de subordinação ou de alternância, mas também de acumulação, com a emergência do modelo de duplo emprego, carreira (“dual career”) ou actividade. 

Uma família moderna passa a ser uma instituição necessária, não apenas à coesão moral e à integração social, mas também à individualização progressiva dos seus membros, uma atribuição que representa uma ruptura com a perspectiva fusional, funcionalista, que inspirou a representação ideal-típica das "famílias-hospital" (Roussel*, 1988). Neste contexto, uma configuração normativa onde a divisão de papéis assentava numa assimetria (“homem provedor, mulher guardiã da casa”) dá lugar a uma configuração tendente à simetria (o “casal provedor e guardião doméstico”). 

Em sentido lato, é inequívoco afirmar que, no tempo presente, a organização do trabalho deve (deveria) ser informada pela necessidade de considerar a existência de diferentes estratégias de coordenação conjugal, paternal e familiar, marcadores sociais significativos nas trajectórias dos profissionais, dos cônjuges, e dos seus filhos, e a coexistência (crescente) de formas de família ditas "não-convencionais", associadas à expansão das trajectórias de vida assentes na conjugalidade limitada e na individualização da vida privada (Dubar*, 2006). 

Trata-se de processos sociais associados à vivência de relações perpassadas pelo efeito da distância, da ausência, da co-presença física intermitente, e a configurações conjugais e familiares que procuram articular proximidade afectiva e distância física - arranjos do tipo “LAT – Living-apart together” (“juntos, embora separados”) –, assentes na desterritorialização da família, conjuntural ou estrutural, e na intermitência da relação conjugal (Muhr*, 2012).

O declínio da influência normativa da tradição indica que as possibilidades de escolha são múltiplas, sendo as certezas, porém, menos nítidas. 

A conciliação familiar, num contexto de mobilidades intensivas (Elliott & Urry*, 2010), de relacionamentos mantidos à distância, é marcada por práticas de balanceamento da comunicação, de reencontro episódico, o planeamento de tempos de recuperação e reparação familiar (Elliott*, 2015), relevante para o cumprimento de expectativas de presença e de prestação de atenção de qualidade, a recuperação de um dano, a captura de um sentido vívido de intimidade, ameaçado pela rarefacção e pelo esbatimento. 

Num contexto de intimidades móveis, importa considerar o papel da contingência na concepção do futuro (Elliott & Urry, 2010), e a possibilidade da experiência de se "estar próximo" não implicar ou contemplar, necessariamente, a proximidade física ou geográfica. O afecto é investido, no tempo presente, de atributos portáteis, sendo passível de ser explorado, actualizado ou recapitulado em termos auto-referenciais (e.g., no comboio, no metro, no avião, ouve-se “aquela música”, vêem as fotografias do último fim-de-semana).

A teleologia do universo familiar, da intimidade, da conjugalidade, constitui-se, neste sentido, como matéria electiva, perpassada pela incerteza, a contingência que não é (pré-)determinada.





*

Dubar, C. (2006). A crise das identidades: A interpretação de uma mutação. Porto: Edições Afrontamento.
Elliott, A., & Urry, J. (2010). Mobile lives. London: Routledge.
Elliott, A. (2015). Identity troubles. London: Routledge.
Lenoir, R. (2003). Généalogie de la morale familial. Paris: Seuil.
Muhr, S. (2012). Strangers in familiar places - Using generic spaces in cross-cultural identity work, Culture and Organization, 18 (1), 51-68.
Roussel, L. (1988). La famille incertaine. Paris: Odile Jacob.
Singly, F. (2007). Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV.
Weber, M. (1971). Economie et société. Paris: Plon.

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